31 de dezembro de 2008
mais ausente que jogral
"Violino e guitarra", Pablo Picasso
debandadas as palavras
no coração meu a vida
feito página desabitada é
moinho a esmo remoendo
e vou como que morrendo
sem horizonte ou ocaso
cultuando o gris com que
a tarde erige seu mural
eu na solidão assim ilhado
pássaro trôpego e silente
em meio à chuva vesperal
19 de dezembro de 2008
da cor do que não permanece
"Gokula", Henrique Coutinho
qual a chuva ou o vento
o amor sempre me foi assim
algo arredio em seus súbitos
pelo que vejo paisagem
em despojos da tarde finda
ou na madrugada da estrela
que ruma incerta
dele me ficou o invisível
da solidão sem entretanto
como se do mar em lugar
do azul uma lembrança de sal
rastro de um indelével
instante de quase pranto
dor violeta na hora estival
23 de outubro de 2008
no silêncio que entremeava a manhã
"Paisagem em Auver na chuva", Vincent van Gogh
o desencanto não faz versos
diz-me na celebração da primavera
o coração assim cerceado
pois nenhuma mísera palavra
retive no esconderijo das mãos
desde que o dia se fez começado
a poesia na bruma a se esconder
em escombros os castelos meus
nenhum moinho então por mover
hoje tudo traduz o que é desalento
se percebem fugaz a areia dos sonhos
saberão cruéis os passos do vento
19 de outubro de 2008
cantiga para um rio de inúmeras margens
"Mulher na janela", Pablo Picasso
para Márcia Maia
um orquidário de versos tua
poesia por uma lira acalentada
assim em sexteto executada
mais redemoinhos, sóis e altiplanos
a palavra espreitando oceanos
atando pétalas ao cotidiano do
que medra em circunstância
seja a estrela celeste ou do atol
lua e amor em quarto crescente
a pedra da rua ou o azul lençol
espelhos, rios, varanda e entreatos
dias santos ou encantos do pecado
tudo no teu canto, tudo faz pensar
que o gris deve sempre ao irisado
ceder tanto a vez quanto o lugar
encontro ainda breves adagios
e mais do que a tarde abreviada
para além de sombra e catavento
o que fere e o que acalanta
e um girassol que se agiganta
12 de outubro de 2008
solfejos matinais para Assis de Mello
"Cisnes refletindo elefantes", Salvador Dali
não trompete a mim
definir se você Salvador
daqui ou de acolá
ante a surrealeza dessa verve
poesia de estalactites que
respinga alumbramentos
e ressoa tríades dignos
da Guimarães prosa
Isabelas sistinas, pedras
ruínas de verões andarilhos
serpentes, domos, pomos
naturezas tortas e assentes
lesmalucas ou mesmo
o dia que se ancora em
estrelas camulfladas
são a gênese dos sete dias
da sua criação
diria que seu céu abobadado
não é mais azul renitente
se assim belo e violáceo
daí resulta que mais e só
importam seus versos
sacrílegos sobre telas
ou as aves que dançam balelas
enquanto férteis os nimbos
se exaltam e se acumulam
11 de outubro de 2008
a tecelã em quem eu me enrodilhara
"O Sonho", Pablo Picasso
Para Diva Paiva
inútil me esquivar da mão
que estende do novelo o fio
quando não mais sei o que
manhã ou labirinto
se a vida é fábula ou mito
desvendando quadrantes
qual Ariadne vem você
me segredando à meia voz
quão simples o que a mim
negaceia como trigonometria
Minotauro aturdido
no centro da arena ouço
da mais bela exegeta
que o amor é tão somente
o sol que varre intempéries
a brisa que sine qua non
10 de outubro de 2008
a quem me desperta para sonhar
"Head", Pablo Picasso
Para Diva Paiva
neste arquipélago da
solidão que me ilhara
eu que não ousei dos
mares a travessia
pergunto quanto dista
o azul que nos separa
ouço das salamandras
que afins que são
amor e fogo se conjugam
no quanto irradiam
cúmplices do sol e do ar
feito mantra e pentagrama
ou como cores no tear
estrela que não alcanço
vislumbro você assim
primavera que há
pouco começada
o que o coração meu
ainda não cumprira
a esfinge não desvelada
28 de setembro de 2008
à deriva mesmo sendo nauta
nem uma cor sequer
"Rimbaud", Pablo Picasso
em esboços sem
lápis, pena ou paleta
a tristeza me lograra
nem mar ou terra
por morada
então ao sol em seu
sobe e desce escada
perguntei à custa de
quanto guache e água
o azul se perfazia
eu que hoje inexorável
à têmpera de setembro
ou à própria poesia
o gris riscando em mim
qualquer nuance
além do tom nanquim
27 de setembro de 2008
de mais um dia que me escapara
20 de setembro de 2008
do que se perdera na estação anterior
9 de setembro de 2008
o zodíaco de quando cheguei aqui
"Mãe e criança", Pablo Picasso
novembro anunciava
eclipses quando nasci
numa quarta-feira, manhã
de vinte e nove labirintos
certamente que um dia
roubado da primavera
de anjos que se ausentaram
ou de sol em desalinho
um instante de pássaros
endereçados ao nada
frágil gládio de velas com
o horizonte confrontado
tudo assim denunciado
nos arabescos do destino
e no azul não se desenhava
nenhum luminoso vaticínio
7 de setembro de 2008
o que me vai na algibeira
"O semeador", Vincent van Gogh
pouco depois que nasci
concedeu-me asas
um hierofante e
também o medo das alturas
com água, vento e fogo
foi sacramentada a
minha solidão
desse labirinto sépia que
é o ontem do meu tempo
às avessas palmilhado
restam cicatrizes no rosto
do coração ferido em ocasos
reminiscências de estrelas
pouco mais a ser levado
carrego comigo alguns
versos de memória
eu que me atenho ao
nexo das palavras
mão nenhuma presa à minha
e ainda a própria sombra
que ora se me esquiva
se foge de mim o sol
o tempo e seus anelos
"Jardim Florido", Vincent van Gogh
o calendário ansiava
a primavera
tempo era de libertar
a beleza da clausura
das torres do inverno
transposto o fosso
das estações
setembro que chegasse
entre cores levadiças
revivendo girassóis
cavaleiro andante
o sol delegou a mim
cultivar flores
sobrevindas
semeando poesia
pelo chão
rapsódias do fogo
"Mantiqueira", Henrique Coutinho
descuidado o sol
deixou a paisagem
incandescente
já que ainda acesas
suas brasas
em meio à turba de asas
que nas distâncias
submergia
ali na tarde eu via
um dos meus desatinos
em rapsódias que o
coração não cessava
sempre que ateadas
antepassadas feridas
exumar amores
lidar com fogueiras
adormecidas
6 de setembro de 2008
sem as bençãos de Netuno
"Barco na maré baixa, Fécamp", de Claude Monet
pelos rochedos
estilhacei ondas
das aves orquestrei
a debandada
ungindo com o sol
mais de uma enseada
destinos ordenei
aos barcos
os ventos dispus
em quadrantes
à paisagem dei azuis
acrescidos de rompantes
no cais sonhei com quem
não e nunca me quis
enquanto o mar soçobrava
entre o amor e seus anis
antes fronteiriças que luminares
"Mesa em frente à janela", Pablo Picasso
seja a estrela ao horizonte
sobrepondo-se
nascente o dia ao leste
ou a pétala pelo vento
sequestrada
o que por elas entra ou
o que sai e vai embora
tudo faz delas liame
entre meu mundo e
o universo lá fora
as fronteiras da casa é
de lei que são as janelas
se por insone ou triste
ao certo não sei
não tenho visto sonhos
escapulindo por elas
5 de setembro de 2008
para quem faz tanger a minha lira
não vim das Plêiades
porém qual Mercúrio
trouxe minha lira
arauto que sou
de sete cordas
e se paro aqui não é tanto
pelo que corri alvissareiro
o orbe que num átimo
circunavegado
mas para com meu
capacete alado reverenciar
quem me impõe tão
célere o coração
e as sandálias minhas
também descalçaria
para tocar o mesmo chão
que recebe os teus pés
4 de setembro de 2008
muitos quadrantes depois
arcanos lunares
3 de setembro de 2008
do meu caderno de viagens
prefaciando a chuva
"Nimbus", Henrique Coutinho
dos nimbos o rufar
mostrou-me do azul a ira
por meus olhos de tantos
outros céus colecionados
ali onde asas encenaram
festejos e ritos
não mais um porto
para celebrar
suspensa que ficava
assim a tarde
eu que sofria a amplidão
bateia nas mãos
apenas procurava o sol
garimpando sonho
algum que restasse
31 de agosto de 2008
eu que não Narciso
24 de agosto de 2008
em Minas navegar
"Vale", Henrique Coutinho
horizontes de cobalto
confinam segredos
barrocas memórias
de ricas vilas
silêncios e clamores
do inconfidente lutar
da outrora capitania
não mais veredas do ouro
já que idos impérios e sóis
restam páginas de um
ideário então nascente
a liberdade que urgia
a forja incandescente
de poetas e heróis
nessa Geraes tão
artífice da história
sem um oceano onde
eu pudesse navegar
em minha vida inglória
fiz dos sonhos meu barco
deste chão meu eterno
e único mar
23 de agosto de 2008
dos oceanos de outrora
"Barcos de pesca na praia", Vincent van Gogh
onde passaram navios
e sonhos tantos
agora nenhum velame
ou um mero barco
o mar que eu carregava
nos olhos
há muito que secou
hoje meu olhar
mais que continentes
vê desertos do convés
a solidão, suas dunas
meus desencantos secretos
eu errante a noroeste
lendo amores de viés
21 de agosto de 2008
no jardim de Chronos
"Primavera em Giverny", Claude Monet
adeus agosto fronteiriço
diz a meus olhos já sem viço
o coração vazio de anelos
chegará a estação sobrevinda
a seu modo a primavera
registrará o tempo ainda
não a átimos de ponteiros
mas com primícias da florada
ampulheta de cores e não
um continuum de areia
pétalas que irão embora
como versos que a dor semeia
quando a vida não aflora
20 de agosto de 2008
mea culpa, xadrez e horizontes
"O poeta", Pablo Picasso
por ter o passo enrodilhado
não me apropriei das alturas
nos cimos não fiz morada
nem também soube buscar o sul
faltaram-me não só as asas
para pássaro ser no azul
abandonar antigos ninhos
eu que tão ao chão condenado
eu que nada, nada fiz
eu que tanto quis ser como
o sol enquanto ave de fogo
agora sou apenas um velho rei
uma peça fora deste jogo
19 de agosto de 2008
deste inverno quase nada
"Paisagem de inverno", Wassily Kandinsky
deste inverno
levarei quase nada
aquarela de frios dias
solidão de quem fica
ante um céu de aves
em debandada
como a natureza que
às flores da primavera
há muito renunciara
o coração coleciona
ausências semeadas
travo de acenos num
cais sob lua clara
feito estátua eu assim
palimpsesto de mármore
como quem nada espera
como quem tudo perdera
e com o vazio se depara
versos para Graça Pires
"Mulher com livro", Pablo Picasso
deram-te os deuses
a palavra encantada
as prerrogativas da pétala
o insurgir da madrugada
tecelã de tardes e oceanos
ensinas a não desdenhar a brisa
num credo onde o amor é irisado
o plenilúnio parte da jornada
é teu o ofício de legitimar primícias
descrever os périplos do sol
por mais que cinco continentes
mesmo que more ele em tua casa
agora sei que foram sempre tuas
todas as estrelas que eu mirava
15 de agosto de 2008
quadruplicando Ubatuba
"Ubatuba quatro vistas", Carlos Herglotz
uma azul janela
vidraça para o tempo
poderiam ali estar
quatro estações
ou do dia quatro estágios
mas é outro o adagio
pois que barcos em procissão
flora, céu e litoral
povoado de sol e sal
casas e casas de então
uma matriz igreja
a capela amarela
da fé abrigos que são
mais a serra que festeja
o tão presente mar:
apenas quatro cantos de Ubatuba
se outros tantos por mirar
Minas naif
"Minha querida Minas Gerais", Carlos Herglotz
tão breve o vilarejo
dessa Minas panorâmica
onde tudo é primavera
já que de flores feito o chão
ali aos céus sobe a igreja
da serra os azuis também vão
cores outras constroem o casario
na terra segue solta a criação
escutar se pode ou o que é
trote, sinos ou mesmo passos
entre silêncios tantos do cenário
certamente que lá ainda se reza
e a beleza impõe o breviário
oráculos, pitonisas e oceanos
13 de agosto de 2008
de continentes perdidos
"O navio de escravos", John Wiliam Turner
com suas linhas de sal
machucou meu rosto
o tempo ido
mais do que faria o sol
se eu zarpado vida adentro
aferrei-me à terra
no medo ancorado
navegando não vislumbradas
enseadas
perdido foi o encalço dos ventos
quando o mar olha-me sem fim
pergunto-me como pude ser
tanto, tão náufrago de mim
10 de agosto de 2008
um poste nas cercanias do imaginário
após o nascimento ao leste
sobre a estação que se avizinha
9 de agosto de 2008
em Santo Antônio do Pinhal
3 de agosto de 2008
além da semeadura
olhando lírios no campus
2 de agosto de 2008
da poesia de arcas e ilhas
"Orpheus", de Paul Duqueylard
Para Alexandre Bonafim
tua é a palavra
constelada
constelada
teus
os solstícios
anjos,
oceanos
e
presságios
azuis
todos e trigais
também
é tua a lira
que
tange outonos
e
eternidades
do
amor coadjuvando
tardes,
impérios
cópulas
e madrigais
urbano
Orfeu
de
primaveras e moinhos
nas
adjacências do
verso
teu
orbita e viceja o sol
27 de julho de 2008
entre cirros, gigas e allemandes
"Paisagem sob um céu de tempestade", Vincent van Gogh
como que tirados
de
um alaúde
versos
quero
repletos
de música
meu
coração barroco
neles
estampado
mais
o vento, seus
bemóis
para
adiante levá-los
entre
mosaicos
de
nuvens
pouco
mais que
além
disso
mesmo
que o sol
se
esquive
ou
o azul se
faça
omisso
de sul a norte o caminho se perfaz
"A estrada de Vétheuil, efeito de neve", Claude Monet
sem
delongas ou adeus
palavras, gelosia afora
ainda que na invernada
périplo pelos campos
para encetar a jornada
elas que são do
coração meu os ais
depois que singrem no vento
em silente permuta
e venham a mim novos
pontos cardeais
24 de julho de 2008
pelo fogo acorrentado
"O suplício de Prometeu", Jean-Louis-Cesar Lair
não vou afogar
num etílico oceano
o repisar da sina de
amores malogrados
posto que à paixão
intrínsecos são
o cambalear, a queda
o permanecer alucinado
a dor que destila
então eu, Prometeu atormentado
destarte salvo o fígado
mas pela eternidade fica
o coração dilacerado
20 de julho de 2008
antes que se apague
"Natureza morta com vela", de Pablo Picasso
que é (e me) chama
funâmbulo o lume
na ponta do pavio
qual inflada vela em
cume de navio
ímpeto ígneo que
oscila e remonta
a destinos do vento
é como o existir em
cada momento, rito
e nada tira a beleza
mesmo do que de antemão
sabemos finito
10 de julho de 2008
rumo ao sol do sul
"Campo coberto de neve com uma grade" de Vincent van Gogh
vão elas tão belas
as aves peregrinas
em sua orquestral formação
que talvez pássaros não sejam
mas anjos sim
e se de seis asas
serão serafins
9 de julho de 2008
6 de julho de 2008
flights and beehives
8 de junho de 2008
Graciliano
Retrato de Graciliano Ramos, Cândido Portinari
em tuas linhas
nunca tortas
mais que o agreste
ou a odisséia no sertão
teus cenários são
a humana condição
que está na ambição
pela terra
no cárcere da seca
no semear da fome
no desterro nordestino
na aridez da existência
palmilhada sob o sol a pino
neste panorama de letras
áspero e despojado
qual a caatinga
a beleza ainda vinga
seja numa cadela magrela
em celas da ditadura ou na
agrura por um periquito
e em meio às ossadas
angústias e seres
beirando o precipício
lapidar palavras
foi o teu ofício
3 de junho de 2008
como se fora Stradivarius
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